segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

A escrivaninha de seu Chico - El escritorio de don Francisco

Francisco Pires Fereira e Rolando Lazarte, autor deste texto, entrelaçam histórias. Marceneiro um, terapeuta comunitário e escritor o outro, a cessão de uma escrivaninha feita a mão pelo primeiro, deslancha novamente o processo criativo do segundo.

Seu Chico cedeu-me uma escrivaninha que ele mesmo fez. Ele e dona Marieta carregaram o móvel até ajeitá-lo no portamalas do meu carro. Ele tem mais de 80 anos. Lavrador de Conceição, pai de Maria, minha mulher, portador de muitas histórias, cedeu-me a peça feita pelas suas próprias mãos, marceneiro, a mim, sociólogo e escritor, eras depois nascido, aqui, na frente do computador, às minhas costas, a escrivaninha de seu Chico me faz companhia.

Fazia tempos que não escrevia nada, mas hoje, depois de saber que o móvel feito a mão pelo meu sogro, viria me sevir para exercitar meu ofício, aqui estou, outra vez. Não é um caderno, não é uma caderneta, não são folhas de papel, mas são folhas de qualquer modo, algum tipo de folhas que poderás, passageiro do ônibus que esperas no ponto, saborear ao teu bel prazer ou, pelo contrário, deixá-las ir no vento. Isto me é indistinto, pois, saídas da pena do escritor, todas as folhas são do vento.

Seu Chico chegou em João Pessoa em 1979. Um dos seus primeiros trabalhos, quando morava na rua Riachuelo, foi de marceneiro. Até hoje, seu olhar se ilumina de alegria, ao contar dos seus primeiros passos na grande cidade, com Tizé, com quem pintavam casas no Bessa. Joselia, uma das suas filhas, mora no Bessa. Outra, Luzimar, o faz, com um sem número de pequenininhos, na casa da rua Riachuelo onde seu Chico começou a vida na cidade.

Luzimar trabalha de costureira nas horas vagas, como dona Marieta o fizera em Conceição, depois de saírem do sítio Maria Soares, onde Maria nasceu. Era um tempo de alegria, dos meninos ajudarem o pai, que fazia moldes para rapadura. Maria levava comida pros trabalhadores no sítio, trabalhava na colheita do algodão. Era um tempo de alegria. O pai de dona Marieta foi morto por causa da posse da terra. Maria não chegou a conhecê-lo. Hoje moram ambos, dona Marieta e seu Chico, na Cidade Verde, em Mangabeira, em frente de um cajuzal onde Romero, meu cunhado, e Mara, sua mulher, colhem frutas que partilham.

Matheus, filho de Mara, sorri no seu sorriso maroto. Marayara, sua irmã, é bem bonita, e ajuda a mãe nos afazeres domésticos. Gilvandro, o marido de Josélia, é construtor, como Arturo fora, só que de casas de menor padrão do que as que Arturo fizera com os planos de Gita. Somente com 20 anos, é que seu Chico foi usar sapatos. É católico fervoroso. Hoje, quando fui pegar a escrivaninha na sua casa, tinha um rosário enrolado encima de uma das cadeiras que hoje estão comigo.

Hoje carreguei terra para dentro de casa. Acompanhamos o casal ao banco, para receberem seus proventos de aposentadoria. Depois fomos para o supermercado, onde algumas compras foram feitas, como leite, bolachas, etc.

De tarde, compramos alguns móveis na rua da República, sabor a tempo. Maria reencontrou um buffet que virá para a sala da minha casa. Será uma casa de verdade.

E eu, com a escrivaninha de seu Chico às minhas costas, também serei (ou já ou) um escritor de verdade. Para não ser dito que não me prezo, que estou com baixa autoestima, ou coisas assim, direi apenas que, com escrivaninha em casa, sinto ser um escritor de verdade, com todas as letras.

Marcadores: Escrivaninha; produção de textos; contexto; Brasil rural; mudança de hábito; el ámbito interno; histórias (contadores de); recordadores de historias (los terapautas comunitarios).

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Tive uma relação conflitiva com a Igreja posconciliar, a do Vaticano II.

Esta aclaração redundante se faz necessária, uma vez que estou falando para mim mesmo. Busco, nestas linhas, tratar de entender melhor o que a leitura do livro do Padre José Comblin, “A Profecia na Igreja, da Editora Paulus,” despertou em mim.

Esta ressonância será parcial, creio, como toda tentativa de qualquer coisa. A aceitação da incompletude, base da pedagogia de Paulo Freire, começa a fazer parte da minha vida . Criado numa família de três irmãos, pai médico e mãe dona de casa (arquiteta, educadora, escritora, mística), recebi em casa os fundamentos da espiritualidade.

Uma estatueta de Cristo Jesús apontando com o dedo para o coração, que para mim era o próprio Cristo, de quem pouco sabia. Mamãe nos lia histórias bíblicas e da vida de Jesus. “La señora del espino blanco”, falava da vida de Maria, mãe de Deus. Uma outra, relatava as peripécias de Noé às voltas com o Dilúvio. Meus pais foram, como eu fui, da seita (como os católicos a chamavam) dos Cavalheiros Americanos do Fogo, em Mendoza, oeste da Argentina. Província conservadora ao pé da cordilheira dos Andes, na escola a pergunta pela religião era inevitável. Diga que és deísta, dizia papai quando eu lhe manifestava as minhas apreensões frente à alternativa de mentir ou dizer a verdade frente à pergunta: Ès católico? ou qual é a tua religião?.

Os evangélicos eram escanteados, e nem pensar nas outras religiões. A minha, eu me negava a qualificar como seita, termo despectivo. Sempre gostei das ordens esotéricas: Rosacruzes, onde aprendi muito do Cristo real, a pessoa humana de Jesus, coisa que aprendi mais tarde também na leitura, num retiro espiritual em Pedra Azul, Espírito Santo, no livro “Cristo e os essênios”, se é que estou bem lembrado do nome. Edouard Schuré, dos “Grandes Iniciados,” bem como Khalil Gibran , Nikos Kazantzakis, e San Francisco de Assis, me levavam para outro Cristo. Um Cristo mais humano, mais perto. Assim também, Chico Xavier e os espíritas de Kardek ou os irmãos da Legião da Boa Vontade.

Ramakrishna, o santo indiano que vivenciou Cristo em si mesmo, em experiência relatada por Romain Rolland no “E evangelho de Ramakrishna”, de Editorial Kier, marcou minha adolescência. Brahmananda, Yogananda, Blavatsky, Bessant, Romain Rolland, Krishnamurti, Leadbeater. O corpo etéreo, A aura astral, Aos pés do mestre. Assim falava Zarathustra, de Nietzsche, na contracorrente. Aliás, a corrente do contra sempre me seduziu. Vivi em meio a correntes opostas. “Papai pra um lado, mamãe para outro,” parecia-me ser a realidade em casa. Como o São Francisco de Assis na biografia de Kazantzakis, parecia-me viver num mundo dilacerado por forças contrárias, em mim e no mundo exterior mais próximo. Aprenderia, muito mais tarde, que aquilo que via no externo, era reflexo do interno. A Ânsia de libertação e o apego ao passado, a ressurreição de Hes e a Dama Negra, o estandarte e o abismo, a razão e a intuição, fé e política.

E, nos anos 1960, na Argentina dos governos marionete que sucederam ao golpe que derrubou Perón em 1955, um fato viria mudar a minha vida: o golpe militar de 1966. O presidente Illia expulso aos empurrões da casa Rosada. Eu estudava no Liceo Agrícola y Enológico Domingo Faustino Sarmiento, em San José, Guaymallén. No dia 28 de junho, não entramos em sala de aula, e fomos ao centro da cidade protestar. Eu tinha 13 anos. Estudantes universitários e outras pessoas se juntaram ao protesto, bem como os secundaristas do Colégio Nacional Agustín Álvarez e os companheiros da Universidad Tecnológica Nacional.

Em 1969 , ano da chegada do homem à lua, ingressei na Sagrada Ordem dos Cavalheiros Americanos do Fogo, fundada por Santiago Bovisio, chamado “Dom Santiago.” Numa forte cisão entre vida material (mundana) e espiritual (o comportamento definido e vigiado pelos superiores, numa relação de obediência), aprendi a deixar de ir aos bailes e festas, bebidas ou sexo nem pensar. Sentia-me sapo de outro poço entre meus colegas de idade e de escola, na rua, em qualquer lugar.

Em 1970, a onda hippie e da contracultura arrefecia, os grupos de Hijos de Dios de Mo, bem como os mórmons, testemunhas de Jeová, Adventistas e Evangélicos em geral, disputavam as atenções deste jovem já de seus 17 anos, que queria começar a namorar e a ser parte do mundo normal, depois de 4 anos de reclusão no internato dos bovisianos em Córdoba.

Não era fácil. A militância, o trabalho o estudo, as guitarreadas, as reuniões espirituais, a mobilização social, foram outras tantas tentativas do ETzinho se sentir parte do mundo, da vida, da gente, da humanidade.

Em 1972, o mendozazo. Já na época, chamavam minha atenção os Sacerdotes del Tercer Mundo, que publicavam na revista “Cristianismo y Revolución” de García Ellorrio. Eu era estudante de sociologia na época, e o conflito revolução interior-social estava na ordem do dia. Eles pareciam juntar as coisas. Seduzia-me, mas me dava má espinha, como se diz em castelhano: me daba mala espina. Suspeitava dessa Igreja guerrilheira que colava cartazes de um Cristo com metralhadora da OSPAAL pelas ruas de Mendoza. Rolando Concatti e o pessoal freireano, Ezequiel Ander-Egg, as meninas de Oikia, Daniel, Luciano, Carmelo Cortese, vinham com essa perspectiva, que incorporamos no novo curriculum da carreira de sociologia, que durou até 1974, no retrocesso da missão Ivanissevich.

Em 1977, após a expulsão da universidade, num clima de desolação, sem amigos, com medo (todo mundo tinha, não só eu), no segundo ano da ditadura de Videla, fiz o exército. Expulso da acsa de altos estudos como subversivo, nem percebia o alcance da acusação. Era um elogio. Mas os subversivos eram mortos. Meu Cristo interior unia-se à Divina Mãe, adorada em Cafh. Eram um só e me guiavam. No exéricto, em Puente del Inca, orávamos de manhã com Darío Martinez, Rubén Dallapé e Hugo Cabezas.

Mas voltando à vaca fria: pensava que a Igreja de esquerda era como os Montoneros, algo estranho. Cheirava mal. Igreja, na minha visão, era exploração, ditadura, genocídio. Os bispos ao lado dos algozes. Caggiano ao lado de Onganía, o golpista de 1966. Um outro prelado, ao lado de Massera e cia., em 1976. É certo que havia os metodistas, o pessoal do ACNUR, que socorria os exilados chilenos fugindo de Pinochet.

Mas na minha mente tudo estava confuso. Weber me aclararia depois, já no Brasil, em São Paulo e João Pessoa. Mas Comblin me aclara mais. E o silêncio em que suas palavras me deixam, merece ficar ali. Sei que tenho muito a aprender. E se estas palavras soam a mea culpa, não faz mal. Talvez seja. Talvez seja necessário um mea culpa para começar uma nova caminhada, ou perceber que nunca se saiu dela, que a confusão é apenas mental. Hoje trabalho como terapeuta comunitário e na tradução do livro de Adalberto Barreto (“Terapia Comunitária passo a passo”), e nesta tarefa e convívio, nesta colaboração em que me reconstruo junto com tanta gente do Brasil e da América Latina, se refaz a minha história, a história que me tocou viver. Ainda há confusões, mas a luz se aproxima.

Este ano a Terapia Comunitária chega à Argentina. Já está em andamento no Uruguay, vai pra Venezuela, e sei que nesta missão de paz e de fraternidade, de amor e de confiança, de esperança e alegria, um Cristo que nos anima a todos e a todas, alguém que nas páginas e no sentir, na clara expressão e na profundidade profética do livro do Pe. Comblin, escolheu os pobres, por causa da gratuidade, da ética do não dinheiro, da solidariedade. Pode ser que não entenda muito ainda desta Igreja que desconheci, que admirei e invejei, da qual desconfiei pensando se tratar de mais uma estratégia de dominação da velha instituição queimadora de hereges e aliada dos poderosos. Hoje sei que é outra Igreja, uma que cava na contracorrente e trabalha por Aquilo que não morre.

Não há palavras conclusivas para este breve relato. A marcha está apenas começando, ou, talvez, nunca parou. É a eterna caminhada da humanidade em busca de si mesma.

Volvía la naturalidad de la vida.

Volvía la naturalidad de la vida.
La vida tal como es.
La vida simple.
Vida.